Jacques Le Goff: a noção de documento/monumento

 
 
Jacques Le Goff em seu livro História e memória no capítulo Documento/ Monumento, inicia sua análise refletindo acerca dos materiais que se aplicam à memória coletiva e à sua forma científica: a História. Os materiais (os documentos e os monumentos) não é aquilo que sobreviveu do que existiu do passado, mas partem de uma escolha daqueles que operaram no desenvolvimento temporal do mundo e daqueles que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, o historiador.

Analisando semanticamente as palavras monumento e documento, Le Goff diz que monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, exemplo: escritos e uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura. O monumento seria um legado à memória coletiva e está ligado ao poder de perpetuação das sociedades históricas, e essa perpetuação pode ser voluntária ou involuntária. O documento está ligado à noção de prova e no final do século XIX e início do século XX, ganhará com a escola histórica positivista o papel de fundamento do fato histórico e que ainda que resulte da escolha/ decisão do historiador, parece apresentar-se por si mesmo como prova histórica. O documento prova era o documento escrito.

Refletindo acerca das transformações que ocorreram na maneira de analisar o documento histórico, Jacques Le Goff nos demonstra a maneira como eram pensando os documentos históricos pelos positivistas através de Fustel de Coulanges, que nos diz que a leitura dos documentos não serviria, pois, para nada se fosse feita com ideias preconcebidas. E que a única habilidade do historiador é tirar dos documentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm. O melhor historiador era aquele que se mantinha o mais próximo dos textos. Fustel de Coulanges como outros historiadores de sua época, envolvidos com o espírito positivista, via como documento o texto.

Avaliando a concepção de documento para o ofício do historiador, desde o triunfo do documento, que coincidiu com o do texto, como bem declarou Fustel de Coulanges, triunfo esse propagado pela escola histórica positivista que tornou indispensável o recurso do documento, até a revolução documental empreendida no século XX que não modificou a concepção de documento, mas a ampliou e a enriqueceu, Le Goff fala da necessidade que houve em romper com a limitação da definição de documento como aquilo que é escrito.

Os fundadores da École des Annales, pioneiros de uma história nova, insistiram na necessidade de se ampliar a noção de documento, afirmando que a história faz-se com documentos escritos, mas que também pode fazer-se e deve fazer-se sem documentos escritos quando os mesmos não existem. A necessidade de se pensar os processos históricos de maneira mais ampla, a partir de múltiplos olhares e de maneira mais total, buscando compreender as diversas formas como uma sociedade pode falar de si mesma através dos silêncios, das relações de poder, dos índices econômicos, da cultura, dos lugares sociais ocupados pelos sujeitos, dos discursos, da arquitetura e vários outros, tornaram-se objeto de análise dos historiadores.

O alargamento daquilo que se entendia como documento ocorreu de maneira qualitativa e quantitativa, segundo nos aponta Le Goff. A memória coletiva e a história passaram a não cristalizar o seu interesse apenas nos grandes homens, nos grandes acontecimentos, na história política, diplomática e militar. Todos os homens tornaram-se interesse da história, os documentos foram ampliados, a capacidade de trabalho e o espírito do historiador foram inovados.

Da confluência das duas revoluções (documental e tecnológica com o surgimento do computador), nasceu a história quantitativa, que pôs mais uma vez em análise a noção de documento e o seu tratamento. Foco principal da história econômica, a história quantitativa modificou o estatuto do documento que passou a não ser mais analisado a partir de si mesmo, mas através de uma relação com a série de documentos que os precede e que os segue, além da utilização do computador que comportou uma nova periodização na memória histórica através de estatísticas e relações quantitativas dos documentos.

Jacques Le Goff nos chama a atenção para a grande importância da realização da crítica aos documentos e que a revolução documental não deve ser entendida como o aspecto mais espetacular que ocorreu em nosso ofício de historiador, e o mesmo nos fala da emergência da reflexão crítica dos documentos para a história enquanto ciência.

 A crítica documental tradicional, iniciada na Idade Média e aperfeiçoada pelos positivistas do século XIX, tinha como objetivo principal a procura pela autenticidade. Com os fundadores dos Annales, a crítica radical da noção de documento foi empreendida, afirmando a necessidade de sentindo crítico nos historiadores que deveriam pôr em discussão os documentos.

Cabe ao historiador problematizar o documento e a sua produção a partir de um olhar lúcido, que entenda que a presença ou ausência do documento depende de causas humanas, e que essas não devem escapar à análise da História. Além de buscar através de uma crítica interna a intencionalidade consciente e/ou inconsciente do documento, as condições de sua produção histórica e as relações de poder ali estabelecidas.

A própria intervenção do historiador ao escolher dentro de um conjunto de dados do passado um documento ao invés de outro, atribuindo-lhe um valor de testemunho, valor esse que depende da sua própria posição na sociedade de sua época e da sua organização mental, demonstra que não é apenas o documento que não é neutro, mas que também não há neutralidade no historiador diante da produção do conhecimento histórico, mesmo que isso ocorra de maneira inconsciente por parte do mesmo.

O documento resulta de uma produção/montagem, consciente ou inconsciente da história por uma determinada época e sociedade que o produziu, mas também sobrevive a outras épocas que sucedem a de sua produção. Documento é uma coisa que fica. É monumento. É resultado de um esforço voluntário ou involuntário das sociedades históricas em impor as sociedades futuras uma imagem de si próprias, e cabe aos historiadores não fazer papel de ingênuo diante de tal produção, afinal, o monumento segundo nos diz Le Goff é uma roupagem, uma montagem, uma aparência enganadora. É preciso demolir esta montagem, problematizar os documentos a partir de uma reflexão crítica, analisando as condições de produção dos documentos/monumentos.

A problematização do documento não deve acontecer apenas com o auxílio de uma única crítica histórica, pois uma única forma de análise não pode explicar o significado total de um documento.  O mesmo pode ser estudado numa perspectiva social, econômica, cultural, política, religiosa, jurídica e, sobretudo enquanto instrumento de poder. Não devemos isolá-lo de outros documentos com os quais o dialogo é possível. Devemos cruzar os documentos e alargar nosso corpo documental para além dos textos tradicionais, através de uma erudição capaz de transferi-lo da esfera da memória para a esfera da ciência histórica.
Referência Bibliográfica:
  • LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 1994.

Adeliana Barros/8º semestre
Bolsista PET - História UFC
 

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