ENSAIOS NA QUARENTENA - Doenças e História: Política e Sociedade em Tempos de Pandemia.

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DOENÇAS E HISTÓRIA: POLÍTICA E SOCIEDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA
Desde o final do ano passado somos bombardeados por informações sobre um vírus que, até então, circulava em Wuhan, na China - um dos maiores centros de produção do mundo. A cidade chinesa foi um dos primeiros lugares que sofreu as ameaças do agora tão afamado novo coronavírus. Depois da China, os países europeus foram rapidamente afetados, Itália e Espanha são exemplos de países mais castigados pela rápida proliferação do vírus, tais países inicialmente não adeririam as medidas recomendadas por especialistas para atenuar a proliferação da doença, e menos de um mês depois as consequências foram drásticas, como a saturação dos seus respectivos sistemas de saúde e centenas de mortes diariamente  No Brasil, ainda estávamos mais tranquilizados, até que em fevereiro o vírus chega, pelo menos de forma oficial, causando forte tensão na população, mas ainda não era possível compreendermos a dimensão do problema, até que em meados do mês de março a OMS (Organização Mundial da Saúde) classificou o novo vírus como uma pandemia (COVID19), ou seja, a crise tomou proporções continentais, mantando milhares de pessoas ao redor do mundo.
No que diz respeito aos procedimentos microbiológicos, a comunidade cientifica foi rápida, fazendo o possível para decodificar o DNA do novo vírus, bem como as suas variações de acordo com cada ambiente específico. No entanto, as respostas não foram positivas, pois a doença apresenta muitas características singulares e diferentes de experiências epidemiológicas do passado. Dessa forma, outros tipos de medidas imediatas precisaram ser tomadas, tendo em vista que a transmissão e as mortes em decorrência do vírus não paravam de subir. Instalada a grande crise, os países ao redor do mundo, principalmente aqueles que estavam sendo mais afetados, precisaram construir planos nacionais de combate ao vírus, ou seja, medidas médicas, sociais e econômicas deveriam ser apresentadas. Inicialmente, as autoridades políticas do mundo não estavam muito atentas para as repercussões deste novo vírus, embora o assunto venha sendo discutido na mídia desde o ano passado, mas as repercussões só foram mais endossadas desde o início do ano. As recomendações de especialistas sobre as devidas precauções contra a disseminação do vírus já vêm sendo comentadas, no Brasil, antes mesmo do carnaval, mas não vivíamos ainda uma situação dramática como se pintou nos meses seguintes e que ainda estamos vivendo, e assim as recomendações não foram acatadas.
Diante da enorme crise que atravessamos, a reflexão histórica ainda continua sendo um exercício importante. Dentre as várias coisas que se aprende ao estudar história, é possível perceber o quanto de passado há em nosso cotidiano, no geral, não somos nada originais e importamos de outros tempos discursos e práticas, seja de forma consciente ou não. O Brasil sob a covid19, tal qual ao Brasil do século XIX -acometido por vários surtos de doenças-quando os médicos do período recomendavam quarentenas e isolamento social eram rechaçados pelas classes comerciantes, e claro, a população mais pobre foi a mais prejudicada. Hoje a situação segue sendo grave, além da morte diária de dezenas de pessoas em todas as regiões do país, é preciso lutar contra a desinformação, o desrespeito de parte expressiva da população as medidas de segurança e a falta de comprometimento das autoridades políticas, tendo como modelo o próprio presidente da república.
O debate médico sobre as doenças no século XIX
É vasta a história das doenças e das epidemias na humanidade. O Brasil, desde a invasão portuguesa, já sofreu com diversos surtos de cólera, febre amarela, varíola, malária, entre outras. Todavia, o século XIX se constitui como um período interessante para analisar práticas e discursos em relação aos aspectos culturais e socioeconômicos das doenças. Como uma história que sempre se repete, é comum ouvir, seja por ignorância ou puro oportunismo, que doença não escolhe cor, idade ou classe social, é certo que a sentença não está totalmente equivocada, contudo, é dever e compromisso ético dos estudiosos das ciências sociais colocá-la em evidência e problematizá-la, assim, é seguro afirmar que as doenças não atingem a todas as pessoas da mesma maneira. É entre os mais pobres e nos grupos historicamente oprimidos que as crises epidemiológicas mais castigam e matam.
O Brasil do século XIX foi o destino de milhares de homens e mulheres que vinham de diversas regiões do continente africano para serem escravizados pelas elites brasileiras. Neste mesmo período a capital do império, bem como outras províncias, sofriam com as crises de doenças, as quais não se sabiam de onde vinham, como eram transmitidas ou mesmo quais medidas de prevenção deveriam ser tomada para. Frente aos ideais de modernização e progresso tão caros as sociedades do período, os surtos de doenças começaram a preocupar as autoridades políticas do império. Segundo o historiador Sidney Chalhoub, a partir dos problemas sociais que eram gerados por epidemias, emergiu a ideologia da administração competente, e da gestão técnica da coisa  pública, em outras palavras, era preciso tomar medidas responsáveis para combater os meios de proliferação de doenças¹, e é nesse sentido que possível observar os teor classista, racista e políticos destas tais gestões técnicas de respaldo científico.
Nesse sentido, é preciso destacar que antes das descobertas cientificas no campo da microbiologia, eram desconhecidas as formas de transmissão, bem como os agentes causadores das doenças, ou seja, não haviam estudos sistemáticos a respeito dos microrganismos que estão no planeta a milhões de ano. Dessa forma, os médicos/sanitaristas do século XIX estavam imbuídos de teorias explicativas das formas de propagação e causas das doenças; havia dois grupos importantes, que principalmente em momentos de crise, eram o centro das discussões médicas, tratava-se dos contagionistas e os infeccionistas. Os contagionistas defendiam que as doenças eram passadas de pessoa para pessoa, de forma direta, através do contato físico ou indiretamente por meio de objetos contaminados; já os infeccionistas consideravam a ação exercida pelos miasmas mórbidos, ou seja, a infecção se dava por meio das substâncias animais e vegetais em putrefação, nas quais contaminavam o ar que era respirado pela população. De acordo com essa concepção a infecção não se dava por contágio, o doente poderia passar a doença pelo simples fato de alterar o ar ambiente que circundava.
Dentro dessa discussão científica em que estava imersa o século XIX, as doenças eram observadas e enquadradas, existindo assim, um enorme esforço por parte de sanitaristas, higienistas (aqui é importante destacar que os médicos não eram o grupo mais diretamente ligados às discussões sobre as doenças, Rodolfo Teófilo, um dos principais nomes na luta contra a varíola no Cerará não era médico, por exemplo.) em elaborar resoluções. Nas quais travaram um imenso debate sobre quais medidas deveriam ser aplicadas no meio social com o objetivo de promover o bem-estar da população e a contenção das doenças. Contudo, é importante questionar quais os sentidos políticos desse debate “científico”, quais interesses estavam por trás do combate às doenças. Os que eram adeptos da explicação contagiosa recomendavam quarentenas e isolamentos sociais, tais medidas eram consideradas irrelevantes para os infeccionistas, nos quais defendiam que era preciso mudar as condições locais de higiene em que a população alvo eram os moradores de cortiços e habitações populares.
A partir desses questionamentos, é pertinente a história da febre amarela no Brasil, que teve dois surtos relevantes, em 1850, quando a doença chega ao império e posteriormente, em 1870 quando a sociedade brasileira fervilhava com ideais progressistas e modernizadores. Ao contrário da varíola (uma doença que era mais fácil de identificar as formas de transmissão por conta da rapidez do contágio em que pessoas próximas aos doentes eram afetadas) a febre amarela contrariava as teorias cientificas que borbulhavam o debate médico da época. Com isso, os médicos do século XIX, longe de saberem da existência de um agente transmissor da doença, colocaram a população negra como o principal vetor da doença. Como a febre amarela foi uma doença trazida ao Brasil pelas embarcações que atracavam nos portos, não demorou muito para que começassem associar a doença ao tráfico negreiro e a população de emigrantes que chegavam ao país.
Quarentena e isolamento social: um problema pra quem?
Logo os médicos que eram adeptos da teoria do contágio recomendavam quarentena para as pessoas que chegavam ao Brasil e isolamento para os doentes em ambientes hospitalares construídos longe dos centros da cidade. Dentro dessas medidas de combate e prevenção de doenças, é importante destacar que quarentenas e isolamentos sociais não tinham uma boa recepção por parcelas consideráveis da sociedade, não só em relação aos surtos de febre amarela, mas também com os de varíola e outras doenças, os grupos comerciantes da época, autoridades políticas e comerciantes internacionais que tinham o Brasil como uma importante rota de comércio, não consideravam tais medidas, fazendo com que aderissem as explicações dos médicos infeccionistas. Já as considerações infeccionistas, além de serem vantajosas para camadas de comerciantes eram também um importante álibi contra as populações pobres, endossando o discurso que eram proliferadores de doenças devido as condições anti-higiênicas em que viviam.
 Voltando a febre amarela, é pertinente apontar as dimensões racial e classista dos discursos oficiais de combate à doença. Em primeiro lugar, seja por razões biológicas ou histórico-climáticas das regiões de onde advinham os africanas, é certo que as populações negras apresentavam uma certa resistência à febre amarela, de acordo com a documentação da cidade do Rio de Janeiro analisada por Chalhoub, os negros  eram muito mais vitimados pela tuberculose do que pela própria febre amarela, como era uma doença que atingia em cheio as populações brancas, perece ter havido uma comoção maior ao seu combate. Tal resistência dos negros à febre amarela, fazia circular entre autoridades políticas do império discursos racistas de que a doença era uma praga africana contra as populações brancas. O segundo surto de febre amarela aconteceu em 1870, bem na época em que estavam em alta as discussões sobre o fim da escravidão e a política de branqueamento da população, em que se pretendia substituir a força de trabalho escrava pela mão de obra livre de imigrantes brancos, mas como a doença atingia em cheio a população imigrante, deu-se início ao debate relacionado as formas de adaptação a condição climática do Brasil.
A questão classista foi um dos aspectos mais evidentes nas políticas sanitaristas de higienização das capitais provinciais, e posteriormente após a instauração da república, dos Estados. Tal qual aponta Sidney Chalhoub, em Cidade Febril, analisando o caso do Rio de Janeiro, as populações pobres no século XIX eram classificadas como classes perigosas, pois além de desafiarem as políticas de controle social, propagavam doenças por conta das formas anti-higiênicas em que viviam, assim, as elites tinham verdadeiro pavor dos pobres. Nesse sentido, os especialistas juntamente com os órgãos de fiscalização e controle social passaram a denunciar os modos de vida e as moradias das camadas mais populares da sociedade. Dessa forma, os cortiços, que era a principal moradia dos mais pobres, passaram a ser estigmatizados de forma geral, esses tipos de habitações foram severamente vigadas e os moradores submetidos os mecanismos de disciplinarização dos corpos e hábitos higiênicos.
 A partir da segunda metade do século XIX, triunfa na sociedade brasileira a ânsia por progresso e modernização, para a realização de tais projetos era preciso dar uma nova cara a cidade, porém, tal desenvolvimento era retardo pelos surtos de doenças e a presença das camadas populares. Dessa forma, após a proclamação da república, se intensificaram os debates de modernização, era preciso eliminar das cidades tudo que representava o passado atrasado do Brasil, assim foram construídos prédios modernos e a população pobre expulsa dos centros das cidades. Por fim, é importante salientar que o deslocamento das camadas populares para as periferias foi um movimento global imposto pela lógica capitalista triunfante e nesse sentido, para além das questões morais e de combate à criminalidade, a história das doenças e das epidemias, materializada pelos discursos de combate às doenças empregados pelas elites políticas e econômicas se constituem como um importante álibi (para usar uma noção do historiador Peter Gay) no projeto de segregação do espaço urbano, em que, certamente, não eram as condições de vidas dos pobres que estavam em questão, mas sim o perigo que essas populações ofereciam aos grupos cuja as vidas, essas sim, deveria ser preservada.
Seca, modernidade e literatura
Ao tratar da problemática das secas no Brasil é de praxe que o cenário do sertão seja colocado em discussão. A literatura, a História e as próprias instituições do Estado moldaram, ao longo do tempo, diversos imaginários sobre esse espaço, dado que não existe, de fato, um consenso do que é o sertão. Entretanto, é certo dizer que esse interesse pela espacialidade interiorana se dá muito pelo debate da tríade sertão-seca-fome, entendendo que o último elemento, o da fome, é um dos motivos que levou, por muito tempo, perdurando até hoje, a pensar o sertão como o lugar do atraso. Em 1909, por exemplo, o saber científico sobre esse território e todas as teorias sobre ele foram institucionalizados em um órgão, a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), a qual tinha o papel de sistematizar missões de reconhecimento do ambiente e traçar planos para sua modernização. Era, portanto, um projeto de urbanização, de progresso, de nação para o sertão de modo que superados seus atrasos em relação à cidade seria possível transformar o Brasil em uma nação moderna
Desse modo, criar uma narrativa sobre a possibilidade de civilizar o lugar era de extrema importância, assim como sobre mostrar o sertanejo como passível de civilidade. Apesar disso, os discursos científicos não entravam em total harmonia sobre o sertão, o sertanejo e como esses elementos se conectam, isto é, como o homem influencia no meio e como o meio influencia o homem. Nesse sentido, grande parte da discussão estatal sobre as secas no sertão acontecem nesse momento de criação da IOCS e visa sua erradicação com um fim de permitir o progresso da nação, e ainda que tenham havido esforços para tratar o problema da seca, de modo especial no início do século XX, ela ainda segue sendo uma questão. Anos antes desse projeto de modernização, a seca de 1877 traz adversidades com notáveis necessidades de debate, uma vez que junto a ela se alastrou a epidemia da varíola que acabou atingindo com mais força os retirantes da seca³. Portanto, questões de classe, sanitárias e de saúde se relacionam com órgãos governamentais e atuação da administração pública frente aos problemas da seca associados à epidemia. Qual política do Estado frente a forte crise que combina a fragilidade pela desnutrição com uma doença devastadora? É, portanto, uma problemática sobre quem tem o que comer e quem tem acesso às políticas sanitárias e de saúde. Ainda que exista uma noção de modernidade pairando sob o Estado, ela não é de fato democrática. A aglomeração de migrantes que fogem da seca e vê, na capital, a “terra prometida” causa um rombo ainda maior na precária saúde e condições de higiene. A epidemia encontra aí um campo muito fértil para o alastramento.
Rodolfo Teófilo (1853-1932), boticário e escritor cearense, insere-se nesse panorama de modernização, mencionado nos parágrafos anteriores, contudo, possui textos importantes para pensar como seca, fome e doença se relacionaram em 1877. Em seu mais conhecido trabalho literário: “A Fome”, Teófilo apresenta a seca de 1877 e a varíola, através da narrativa naturalista. Nessa obra, Teófilo narra a história de Manuel de Freitas, fazendeiro, dono de terras, de escravos e cabeças de gado, que migra para Fortaleza nos anos da seca junto com a sua família. Manuel de Freitas, embora detentor de posses consideráveis, durante a estiagem torna-se apenas mais uma vítima do flagelo, por mais que tenha insistido, perdeu seu rebanho bovino e foi obrigado a vender seus estimados escravos. Durante a saga de Manuel para chegar com sua família à capital da província, Teófilo narra episódios de críticos de uma população jogada a própria sorte, faminta que se debandavam sob o sol escaldante rumo a uma esperança de sobrevivência. Com a história de Manuel de Freitas, Teófilo quer deixar claro que o flagelo da seca, bem como a doença apavorante que enche o corpo de bexigas, não escolhe quem vai padecer, que até mesmo um homem distinto como Freitas era aviltado por tamanha desgraça. Além disso, o escritor, na narração da história da família de Manoel e na construção de outras personagens, nos apresenta ainda alguns elementos para entendermos as relações de classe, saúde e políticas de Estado desenvolvidas para combater a crise famélica e também o caos sanitário devido à forte epidemia da varíola. 
Seca, Doença e Classe
Ao migrar para a capital alencarina, a família de Freitas que antes gozava uma vida abastada, passa a mesma condição dos inúmeros retirantes, sem alimentação, sem moradia e sem dignidade de vida. Teófilo cita que: “A seca, com um tremendo golpe, destruiu as fortunas e aniquilou os preconceitos, e, desaparecidas as posições, a todos nivelou”. (TEÓFILO, 1979, p. 114). Em uma rápida leitura da obra, somos levados a crer que realmente as classes pareciam realmente ter sido niveladas. Mas, com o aprofundamento do texto, identificamos elementos que privilegiam a família de Manoel devido sua relação com outras personagens da trama, nos quais a fome, a seca e a doença não pareciam intimidar. Através das personagens Semeão de Arruda e Prisco da Trindade, Teófilo denuncia que frente a um estado de calamidade o que prevalece são os interesses pessoais e que é perfeitamente possível haver fartura na casa de um homem rico, traficante de escravos, enquanto a grande população de pobres rasteja faminta nas ruas. Prisco da Trindade, um homem muito rico, frequentador de bailes beneficentes para socorrer flagelados, sua casa é sempre narrada com pujança e fartura.
Semeão de Arruda era comissário distribuidor de socorros públicos que trabalhava nos abarracamentos, construções feitas pelo governo para abrigar o contingente de retirantes.   Frente a uma multidão de famintos, que todos os dias chegavam aos abarracamentos em Fortaleza, o governo buscava “empregá-los” na atividade de carregação de pedras. Segundo a narração de Teófilo, diariamente, inúmeras pessoas dirigiam-se a pedreira instalada na região do Mucuripe para carregar até a Messejana pesadas pedras. Em troca dessa árdua tarefa, os retirantes ganhavam a chamada ração, composta de um litro de farinha e 500 gramas de carne do sul. 
Sobre o carregamento de pedras, Teófilo, através do diálogo entre Manuel de Freitas e outra personagem nos traz elementos para pensar as condições desse trabalho no cenário descrito no romance:
Não acha o transporte de pedras uma medida vexatória extravagante? O maior dos absurdos. Justificam-no como um meio de livrar o povo da ociosidade. A medida é desastrada. [...] Alguns nem chegam com a carga que o governo lhes pôs às costas, ao porto do destino; caem no caminho e morrem de fome, de fadiga. [...] E o governo, isolado em seu palácio, oculta-se de propósito, para não ver o desfilar do préstito da miséria pelas ruas da capital! (TEÓFILO, 1979, p. 116)
Sobre a negligência do governo no combate à fome e a ajuda a população famélica, encontramos nas páginas da revista ilustrada: “O Besouro”, de 20 de julho de 1878, duas fotos registradas por José do Patrocínio, na qual é possível observar os corpos de dois retirantes extremamente desnutridos. O título das fotos era o seguinte: “Páginas tristes – cenas e aspectos do Ceará (para Sua Majestade, o Sr. Governo e os Srs. Fornecedores verem”. Na legenda das imagens podemos ler: “Estado da população retirante... e ainda há quem lhes mande farinha falsificada e especule com eles.” Vale destacar ainda o papel das folhas ilustradas na época citada, pois eram importantes instrumentos de crítica e de sátira contra o governo imperial.
Ainda na narração de Teófilo, o autor apresenta uma outra política desenvolvida pelo Estado para o controle da população famélica que seria o embarque da mesma forçadamente para regiões distantes e inóspitas, como a região do Amazonas. Acerca disse, o autor narra:
Chegou a hora da separação. Quatrocentos retirantes de todas as idades marchavam em préstito para o porto da cidade. Era triste aquela procissão, como o desfilar de um enterro. Todos magros, macilentos e esfarrapados. [...] Forçados a abandonar a terra natal, caminhavam desalentados (TEÓFILO, 1979, p. 124)
“Era a emigração a última desgraça reservada ao cearense; e a emigração forçada” (TEÓFILO, 1979, p. 127).
O que fica evidente na trama de Teófilo, bem como na construção de suas personagens, são os problemas de uma administração pouco interessada, a falta de organização e critérios para distribuição de víveres, o mais importante é a promoção da caridade dos ricos, nos quais compactuam com a lógica perversa das distinções socias, do trabalho escravo e de que Deus só dá aos seus filhos aquilo que é merecido.
A seca padecia sob o Ceará, quando uma enorme epidemia de varíola se espalhou pela população, mais uma vez é colocado que a doença não escolhe suas vítimas, porém é entre a população retirante que ela é mais brutal. Sabemos que durante a ocorrência da seca de 1877, já eram conhecidas vacinas contra a varíola, porém Teófilo, que tem um reconhecido trabalho de combate a varíola, só teve acesso ao conhecimento anos depois. O governo ainda construiu lazarentos para acolher a população doente, mas as estruturas eram precárias, o máximo que faziam era prolongar a dor e a morte. A chegada desse surto viral agravou ainda mais a situação dos retirantes que já se encontravam em situação grave de desnutrição e fome.
 A varíola entrou traiçoeiramente em Fortaleza. As condições da população proporcionaram ao mal os meios seguros de um ataque súbito e terrível. A elevação da temperatura a 33° centígrados, a falta de vacina, o nenhum asseio nas habitações, a aglomeração dos emigrantes nos abarracamentos abriram mais o campo ao inimigo. [...] O governo construiu lazaretos provisórios, contratou médicos, nomeou comissões de pronto socorro, mas tudo apenas atenuava um pouco os sofrimentos da população indigente [...] As enfermarias regurgitavam de doentes [...] A peste invadiu tudo, desde a palhoça dos retirantes até o palácio do presidente da província.” (TEÓFILO, 1979, p. 155-156)
Dentre os vários episódios narrados por Teófilo, é possível perceber como seca/fome e doença desumanizavam a população. A varíola se espalhava rapidamente e deixava no enfermo um aspecto repugnante, dezenas de pessoas morriam diariamente e não havia um serviço de sepultamento, as pessoas tinham medo de contrair a doença, muitas morriam e poucos tomavam conhecimento. Uma das cenas mais desumanizadora do romance, é a narrativa sobre a morte da personagem Quitéria do Cabo, uma senhora de idade que não tinha familiares. Quitéria contraiu a doença e não tinha forças nem para chamar um vizinho, sucumbe no interior de sua casa, sem ajuda, rasteja-se em busca de um poco de água, acaba morrendo e seu corpo permanece por dias no mesmo local. Sua morte só é descoberta, dias depois, quando aves de rapina cercam sua residência.
É claro que estávamos longe de falar dos direitos do idoso, mas esta cena evidencia o medo da população de morrer doente, a falta de assistência e a desumanização da miséria associada a doença. Nesse sentido, é preciso reiterar, seja em nome da história das doenças, da seca, da fome ou dos pobres, que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, diante da crise quem padece são homens e mulheres pobres, cuja a vida não importa ou pouco importa, os pobres são historicamente usados para promover a bondade dos ricos e diante deste período que combinou fome e doença podemos perceber como a doença é aviltante, mas que ser pobre diante de tanta desigualdade é mais humilhante ainda.
Considerações Finais
As doenças sempre existiram na história da humanidade, nem sempre estivemos certos de como elas eram transmitidas ou quais eram as suas causas. Há um longo percurso na história das ciências e das descobertas acerca dos microrganismos; a elaboração de vacinas, remédios, são tecnologias muito recentes, a popularização e o acesso aos sistemas de saúde é uma conquista social lograda por meio de décadas de lutas e reivindicações sociais. O direito a saúde é um direito humano e hoje, é dever do Estado garanti-lo, no Brasil a existência de um sistema único de saúde é uma vitória recente da população e deve ser preservado para garantir que os mais pobres tenham acesso à saúde.
Diante de momentos de forte crise é natural a cobrança de respostas eficazes. Mas como sabemos as descobertas cientificas levam tempo e fazer usufruto delas em prol do bem comum da sociedade, depende do engajamento político de quem investe e de quem faz ciência. No século XIX, não sabíamos do que sabemos hoje, não tínhamos os direitos assegurados, e é por isso que preciso estar vigilante quanto as nossas conquistas sociais, fruto de história sangrenta de batalhas perdidas. O capitalismo dependente brasileiro permanece como um dos principais fornecedores de produtos primários do mundo, enquanto continua importando tecnologia dos países ricos, não somos capazes de produzir tecnologia de ponta, que seria essencial no enfrentamento desta pandemia, e certamente, não é por falta de recursos ou mão de obra qualificada. É significativo que nos últimos anos o investimento nas universidades públicas, principais instituições de produção do conhecimento científico brasileiro, tenha despencado.
A pandemia está acontecendo e fica evidente a importância de um Estado forte, comprometido com os direitos da população, principalmente daqueles que vivem em situação de vulnerabilidade econômica. O covid19 chega ao Brasil pelas camadas mais elevadas da população, porém quem mais morre são os moradores de periferia, é inadmissível que depois de tantas descobertas e melhoramentos no campo da saúde, os mais pobres continuem pagando a conta em momentos de crise. Não podemos recuar em direitos que foram conquistados, sabemos que o primeiro impulso das autoridades políticas é negar as proporções nefastas das doenças, é contrariar as medidas de prevenção, é mesmo, deixar morrer aqueles, cuja a vida parece valer nada, para salvar a economia.  Mas se a história nos ensina alguma coisa, como muitos insiste em dizer, é preciso estar atento, é direito do povo exigir ações técnicas dos governos estaduais e deferias, preservar suas vidas e ter acesso à informação confiáveis. Não é negando a ciência, o conhecimento revolucionário do último século que iremos chegar vivos ao final desta crise.


Autores
ANA KAROLINA FREIRE OLIVEIRA
PEDRO GILSON DE OLIVEIRA PAULA FILHO
CAROLINA DE FÁTIMA LINHARES AUGUSTO



¹ CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemia na corte imperial – São Paulo: Companhia das Letras. 1995.

² MORAES, Kleiton de Sousa. O Progresso descobre o sertão - A inspetoria de Obras Contra as Secas (1909-1918). 1. ed. Alameda Editorial, 2018.

³ ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Editora: Cortez. Edição: 5ª Edição. Ano: 2011.

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