ENSAIOS NA QUARENTENA - Doenças e História: Política e Sociedade em Tempos de Pandemia.
PDF DO ENSAIO
DOENÇAS E
HISTÓRIA: POLÍTICA E SOCIEDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA
Desde o final do ano passado somos bombardeados por informações sobre um
vírus que, até então, circulava em Wuhan, na China - um dos maiores centros de
produção do mundo. A cidade chinesa foi um dos primeiros lugares que sofreu as
ameaças do agora tão afamado novo coronavírus. Depois da China, os países
europeus foram rapidamente afetados, Itália e Espanha são exemplos de países
mais castigados pela rápida proliferação do vírus, tais países inicialmente não
adeririam as medidas recomendadas por especialistas para atenuar a proliferação
da doença, e menos de um mês depois as consequências foram drásticas, como a
saturação dos seus respectivos sistemas de saúde e centenas de mortes diariamente
No Brasil, ainda estávamos mais tranquilizados, até que em fevereiro o vírus
chega, pelo menos de forma oficial, causando forte tensão na população, mas
ainda não era possível compreendermos a dimensão do problema, até que em meados
do mês de março a OMS (Organização Mundial da Saúde) classificou o novo vírus
como uma pandemia (COVID19), ou seja, a crise tomou proporções continentais,
mantando milhares de pessoas ao redor do mundo.
No que diz respeito aos procedimentos microbiológicos, a comunidade
cientifica foi rápida, fazendo o possível para decodificar o DNA do novo vírus,
bem como as suas variações de acordo com cada ambiente específico. No entanto,
as respostas não foram positivas, pois a doença apresenta muitas
características singulares e diferentes de experiências epidemiológicas do
passado. Dessa forma, outros tipos de medidas imediatas precisaram ser tomadas,
tendo em vista que a transmissão e as mortes em decorrência do vírus não
paravam de subir. Instalada a grande crise, os países ao redor do mundo,
principalmente aqueles que estavam sendo mais afetados, precisaram construir
planos nacionais de combate ao vírus, ou seja, medidas médicas, sociais e
econômicas deveriam ser apresentadas. Inicialmente, as autoridades políticas do
mundo não estavam muito atentas para as repercussões deste novo vírus, embora o
assunto venha sendo discutido na mídia desde o ano passado, mas as repercussões
só foram mais endossadas desde o início do ano. As recomendações de
especialistas sobre as devidas precauções contra a disseminação do vírus já vêm
sendo comentadas, no Brasil, antes mesmo do carnaval, mas não vivíamos ainda
uma situação dramática como se pintou nos meses seguintes e que ainda estamos
vivendo, e assim as recomendações não foram acatadas.
Diante da enorme crise que atravessamos, a reflexão
histórica ainda continua sendo um exercício importante. Dentre as várias coisas
que se aprende ao estudar história, é possível perceber o quanto de passado há
em nosso cotidiano, no geral, não somos nada originais e importamos de outros
tempos discursos e práticas, seja de forma consciente ou não. O Brasil sob a
covid19, tal qual ao Brasil do século XIX -acometido por vários surtos de
doenças-quando os médicos do período recomendavam quarentenas e isolamento
social eram rechaçados pelas classes comerciantes, e claro, a população mais pobre
foi a mais prejudicada. Hoje a situação segue sendo grave, além da morte diária
de dezenas de pessoas em todas as regiões do país, é preciso lutar contra a
desinformação, o desrespeito de parte expressiva da população as medidas de
segurança e a falta de comprometimento das autoridades políticas, tendo como
modelo o próprio presidente da república.
O
debate médico sobre as doenças no século XIX
É
vasta a história das doenças e das epidemias na humanidade. O Brasil, desde a
invasão portuguesa, já sofreu com diversos surtos de cólera, febre amarela,
varíola, malária, entre outras. Todavia, o século XIX se constitui como um
período interessante para analisar práticas e discursos em relação aos aspectos
culturais e socioeconômicos das doenças. Como uma história que sempre se
repete, é comum ouvir, seja por ignorância ou puro oportunismo, que doença não
escolhe cor, idade ou classe social, é certo que a sentença não está totalmente
equivocada, contudo, é dever e compromisso ético dos estudiosos das ciências sociais
colocá-la em evidência e problematizá-la, assim, é seguro afirmar que as
doenças não atingem a todas as pessoas da mesma maneira. É entre os mais pobres
e nos grupos historicamente oprimidos que as crises epidemiológicas mais
castigam e matam.
O
Brasil do século XIX foi o destino de milhares de homens e mulheres que vinham
de diversas regiões do continente africano para serem escravizados pelas elites
brasileiras. Neste mesmo período a capital do império, bem como outras
províncias, sofriam com as crises de doenças, as quais não se sabiam de onde
vinham, como eram transmitidas ou mesmo quais medidas de prevenção deveriam ser
tomada para. Frente aos ideais de modernização e progresso tão caros as
sociedades do período, os surtos de doenças começaram a preocupar as
autoridades políticas do império. Segundo o historiador Sidney Chalhoub, a
partir dos problemas sociais que eram gerados por epidemias, emergiu a
ideologia da administração competente, e da gestão técnica da coisa pública, em outras palavras, era preciso
tomar medidas responsáveis para combater os meios de proliferação de doenças¹, e é nesse sentido que
possível observar os teor classista, racista e políticos destas tais gestões
técnicas de respaldo científico.
Nesse
sentido, é preciso destacar que antes das descobertas cientificas no campo da
microbiologia, eram desconhecidas as formas de transmissão, bem como os agentes
causadores das doenças, ou seja, não haviam estudos sistemáticos a respeito dos
microrganismos que estão no planeta a milhões de ano. Dessa forma, os
médicos/sanitaristas do século XIX estavam imbuídos de teorias explicativas das
formas de propagação e causas das doenças; havia dois grupos importantes, que
principalmente em momentos de crise, eram o centro das discussões médicas,
tratava-se dos contagionistas e os infeccionistas. Os contagionistas defendiam
que as doenças eram passadas de pessoa para pessoa, de forma direta, através do
contato físico ou indiretamente por meio de objetos contaminados; já os
infeccionistas consideravam a ação exercida pelos miasmas mórbidos, ou seja, a
infecção se dava por meio das substâncias animais e vegetais em putrefação, nas
quais contaminavam o ar que era respirado pela população. De acordo com essa
concepção a infecção não se dava por contágio, o doente poderia passar a doença
pelo simples fato de alterar o ar ambiente que circundava.
Dentro
dessa discussão científica em que estava imersa o século XIX, as doenças eram
observadas e enquadradas, existindo assim, um enorme esforço por parte de sanitaristas,
higienistas (aqui é importante destacar que os médicos não eram o grupo mais
diretamente ligados às discussões sobre as doenças, Rodolfo Teófilo, um dos
principais nomes na luta contra a varíola no Cerará não era médico, por
exemplo.) em elaborar resoluções. Nas quais travaram um imenso debate sobre
quais medidas deveriam ser aplicadas no meio social com o objetivo de promover
o bem-estar da população e a contenção das doenças. Contudo, é importante
questionar quais os sentidos políticos desse debate “científico”, quais
interesses estavam por trás do combate às doenças. Os que eram adeptos da
explicação contagiosa recomendavam quarentenas e isolamentos sociais, tais
medidas eram consideradas irrelevantes para os infeccionistas, nos quais
defendiam que era preciso mudar as condições locais de higiene em que a
população alvo eram os moradores de cortiços e habitações populares.
A
partir desses questionamentos, é pertinente a história da febre amarela no
Brasil, que teve dois surtos relevantes, em 1850, quando a doença chega ao
império e posteriormente, em 1870 quando a sociedade brasileira fervilhava com
ideais progressistas e modernizadores. Ao contrário da varíola (uma doença que
era mais fácil de identificar as formas de transmissão por conta da rapidez do
contágio em que pessoas próximas aos doentes eram afetadas) a febre amarela
contrariava as teorias cientificas que borbulhavam o debate médico da época.
Com isso, os médicos do século XIX, longe de saberem da existência de um agente
transmissor da doença, colocaram a população negra como o principal vetor da
doença. Como a febre amarela foi uma doença trazida ao Brasil pelas embarcações
que atracavam nos portos, não demorou muito para que começassem associar a
doença ao tráfico negreiro e a população de emigrantes que chegavam ao país.
Quarentena
e isolamento social: um problema pra quem?
Logo
os médicos que eram adeptos da teoria do contágio recomendavam quarentena para
as pessoas que chegavam ao Brasil e isolamento para os doentes em ambientes
hospitalares construídos longe dos centros da cidade. Dentro dessas medidas de
combate e prevenção de doenças, é importante destacar que quarentenas e
isolamentos sociais não tinham uma boa recepção por parcelas consideráveis da
sociedade, não só em relação aos surtos de febre amarela, mas também com os de
varíola e outras doenças, os grupos comerciantes da época, autoridades políticas
e comerciantes internacionais que tinham o Brasil como uma importante rota de
comércio, não consideravam tais medidas, fazendo com que aderissem as
explicações dos médicos infeccionistas. Já as considerações infeccionistas,
além de serem vantajosas para camadas de comerciantes eram também um importante
álibi contra as populações pobres, endossando o discurso que eram
proliferadores de doenças devido as condições anti-higiênicas em que viviam.
Voltando a febre amarela, é pertinente apontar
as dimensões racial e classista dos discursos oficiais de combate à doença. Em
primeiro lugar, seja por razões biológicas ou histórico-climáticas das regiões
de onde advinham os africanas, é certo que as populações negras apresentavam
uma certa resistência à febre amarela, de acordo com a documentação da cidade
do Rio de Janeiro analisada por Chalhoub, os negros eram muito mais vitimados pela tuberculose do
que pela própria febre amarela, como era uma doença que atingia em cheio as
populações brancas, perece ter havido uma comoção maior ao seu combate. Tal
resistência dos negros à febre amarela, fazia circular entre autoridades
políticas do império discursos racistas de que a doença era uma praga africana
contra as populações brancas. O segundo surto de febre amarela aconteceu em
1870, bem na época em que estavam em alta as discussões sobre o fim da
escravidão e a política de branqueamento da população, em que se pretendia
substituir a força de trabalho escrava pela mão de obra livre de imigrantes
brancos, mas como a doença atingia em cheio a população imigrante, deu-se
início ao debate relacionado as formas de adaptação a condição climática do
Brasil.
A
questão classista foi um dos aspectos mais evidentes nas políticas sanitaristas
de higienização das capitais provinciais, e posteriormente após a instauração
da república, dos Estados. Tal qual aponta Sidney Chalhoub, em Cidade Febril,
analisando o caso do Rio de Janeiro, as populações pobres no século XIX eram
classificadas como classes perigosas, pois além de desafiarem as políticas de
controle social, propagavam doenças por conta das formas anti-higiênicas em que
viviam, assim, as elites tinham verdadeiro pavor dos pobres. Nesse sentido, os
especialistas juntamente com os órgãos de fiscalização e controle social passaram
a denunciar os modos de vida e as moradias das camadas mais populares da
sociedade. Dessa forma, os cortiços, que era a principal moradia dos mais
pobres, passaram a ser estigmatizados de forma geral, esses tipos de habitações
foram severamente vigadas e os moradores submetidos os mecanismos de
disciplinarização dos corpos e hábitos higiênicos.
A partir da segunda metade do século XIX,
triunfa na sociedade brasileira a ânsia por progresso e modernização, para a
realização de tais projetos era preciso dar uma nova cara a cidade, porém, tal
desenvolvimento era retardo pelos surtos de doenças e a presença das camadas
populares. Dessa forma, após a proclamação da república, se intensificaram os
debates de modernização, era preciso eliminar das cidades tudo que representava
o passado atrasado do Brasil, assim foram construídos prédios modernos e a
população pobre expulsa dos centros das cidades. Por fim, é importante
salientar que o deslocamento das camadas populares para as periferias foi um
movimento global imposto pela lógica capitalista triunfante e nesse sentido,
para além das questões morais e de combate à criminalidade, a história das
doenças e das epidemias, materializada pelos discursos de combate às doenças
empregados pelas elites políticas e econômicas se constituem como um importante
álibi (para usar uma noção do historiador Peter Gay) no projeto de segregação
do espaço urbano, em que, certamente, não eram as condições de vidas dos pobres
que estavam em questão, mas sim o perigo que essas populações ofereciam aos
grupos cuja as vidas, essas sim, deveria ser preservada.
Seca, modernidade e literatura
Ao tratar da problemática das secas no Brasil é de praxe que o cenário
do sertão seja colocado em discussão. A literatura, a História e as próprias instituições
do Estado moldaram, ao longo do tempo, diversos imaginários sobre esse espaço,
dado que não existe, de fato, um consenso do que é o sertão. Entretanto, é
certo dizer que esse interesse pela espacialidade interiorana se dá muito pelo
debate da tríade sertão-seca-fome, entendendo que o último elemento, o da fome,
é um dos motivos que levou, por muito tempo, perdurando até hoje, a pensar o
sertão como o lugar do atraso. Em 1909, por exemplo, o saber científico sobre
esse território e todas as teorias sobre ele foram institucionalizados em um
órgão, a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), a qual tinha o papel de
sistematizar missões de reconhecimento do ambiente e traçar planos para sua modernização.
Era, portanto, um projeto de urbanização, de progresso, de nação para o
sertão de modo que superados seus atrasos em relação à cidade seria possível
transformar o Brasil em uma nação moderna.²
Desse modo, criar uma narrativa sobre a
possibilidade de civilizar o lugar era de extrema importância, assim
como sobre mostrar o sertanejo como passível de civilidade. Apesar disso, os
discursos científicos não entravam em total harmonia sobre o sertão, o
sertanejo e como esses elementos se conectam, isto é, como o homem influencia
no meio e como o meio influencia o homem. Nesse sentido, grande parte da
discussão estatal sobre as secas no sertão acontecem nesse momento de criação
da IOCS e visa sua erradicação com um fim de permitir o progresso da
nação, e ainda que tenham havido esforços para tratar o problema da seca, de
modo especial no início do século XX, ela ainda segue sendo uma questão. Anos
antes desse projeto de modernização, a seca de 1877 traz adversidades com
notáveis necessidades de debate, uma vez que junto a ela se alastrou a
epidemia da varíola que acabou atingindo com mais força os retirantes da seca³. Portanto,
questões de classe, sanitárias e de saúde se relacionam com órgãos
governamentais e atuação da administração pública frente aos problemas da seca
associados à epidemia. Qual política do Estado frente a forte crise que combina
a fragilidade pela desnutrição com uma doença devastadora? É, portanto, uma
problemática sobre quem tem o que comer e quem tem acesso às políticas
sanitárias e de saúde. Ainda que exista uma noção de modernidade pairando sob o
Estado, ela não é de fato democrática. A aglomeração de migrantes que fogem da
seca e vê, na capital, a “terra prometida” causa um rombo ainda maior na
precária saúde e condições de higiene. A epidemia encontra aí um campo muito
fértil para o alastramento.
Rodolfo Teófilo (1853-1932), boticário e escritor
cearense, insere-se nesse panorama de modernização, mencionado nos parágrafos
anteriores, contudo, possui textos importantes para pensar como seca, fome e
doença se relacionaram em 1877. Em seu mais conhecido trabalho literário: “A
Fome”, Teófilo apresenta a seca de 1877 e a varíola, através da narrativa
naturalista. Nessa obra, Teófilo narra a história de Manuel de Freitas,
fazendeiro, dono de terras, de escravos e cabeças de gado, que migra para
Fortaleza nos anos da seca junto com a sua família. Manuel de Freitas, embora
detentor de posses consideráveis, durante a estiagem torna-se apenas mais uma
vítima do flagelo, por mais que tenha insistido, perdeu seu rebanho bovino e
foi obrigado a vender seus estimados escravos. Durante a saga de Manuel para
chegar com sua família à capital da província, Teófilo narra episódios de
críticos de uma população jogada a própria sorte, faminta que se debandavam sob
o sol escaldante rumo a uma esperança de sobrevivência. Com a história de
Manuel de Freitas, Teófilo quer deixar claro que o flagelo da seca, bem como a
doença apavorante que enche o corpo de bexigas, não escolhe quem vai padecer,
que até mesmo um homem distinto como Freitas era aviltado por tamanha desgraça.
Além disso, o escritor, na narração da história da família de Manoel e na
construção de outras personagens, nos apresenta ainda alguns elementos para
entendermos as relações de classe, saúde e políticas de Estado desenvolvidas
para combater a crise famélica e também o caos sanitário devido à forte
epidemia da varíola.
Seca, Doença e Classe
Ao migrar para a capital alencarina, a família de Freitas que antes
gozava uma vida abastada, passa a mesma condição dos inúmeros retirantes, sem
alimentação, sem moradia e sem dignidade de vida. Teófilo cita que: “A seca,
com um tremendo golpe, destruiu as fortunas e aniquilou os preconceitos, e,
desaparecidas as posições, a todos nivelou”. (TEÓFILO, 1979, p. 114). Em uma
rápida leitura da obra, somos levados a crer que realmente as classes pareciam
realmente ter sido niveladas. Mas, com o aprofundamento do texto, identificamos
elementos que privilegiam a família de Manoel devido sua relação com outras
personagens da trama, nos quais a fome, a seca e a doença não pareciam
intimidar. Através das personagens Semeão de Arruda e Prisco da Trindade,
Teófilo denuncia que frente a um estado de calamidade o que prevalece são os
interesses pessoais e que é perfeitamente possível haver fartura na casa de um
homem rico, traficante de escravos, enquanto a grande população de pobres
rasteja faminta nas ruas. Prisco da Trindade, um homem muito rico, frequentador
de bailes beneficentes para socorrer flagelados, sua casa é sempre narrada com
pujança e fartura.
Semeão de Arruda era comissário distribuidor de socorros públicos que
trabalhava nos abarracamentos, construções feitas pelo governo para abrigar o
contingente de retirantes. Frente a uma multidão de famintos, que todos
os dias chegavam aos abarracamentos em Fortaleza, o governo buscava
“empregá-los” na atividade de carregação de pedras. Segundo a narração de
Teófilo, diariamente, inúmeras pessoas dirigiam-se a pedreira instalada na
região do Mucuripe para carregar até a Messejana pesadas pedras. Em troca dessa
árdua tarefa, os retirantes ganhavam a chamada ração, composta de um litro de
farinha e 500 gramas de carne do sul.
Sobre o carregamento de pedras, Teófilo, através do diálogo entre Manuel
de Freitas e outra personagem nos traz elementos para pensar as condições desse
trabalho no cenário descrito no romance:
Não acha o transporte de pedras uma medida vexatória extravagante? O
maior dos absurdos. Justificam-no como um meio de livrar o povo da ociosidade.
A medida é desastrada. [...] Alguns nem chegam com a carga que o governo lhes
pôs às costas, ao porto do destino; caem no caminho e morrem de fome, de
fadiga. [...] E o governo, isolado em seu palácio, oculta-se de propósito, para
não ver o desfilar do préstito da miséria pelas ruas da capital! (TEÓFILO,
1979, p. 116)
Sobre a negligência do governo no combate à fome e a ajuda a população
famélica, encontramos nas páginas da revista ilustrada: “O Besouro”, de 20 de
julho de 1878, duas fotos registradas por José do Patrocínio, na qual é
possível observar os corpos de dois retirantes extremamente desnutridos. O
título das fotos era o seguinte: “Páginas tristes – cenas e aspectos do Ceará
(para Sua Majestade, o Sr. Governo e os Srs. Fornecedores verem”. Na legenda
das imagens podemos ler: “Estado da população retirante... e ainda há quem lhes
mande farinha falsificada e especule com eles.” Vale destacar ainda o papel das
folhas ilustradas na época citada, pois eram importantes instrumentos de
crítica e de sátira contra o governo imperial.
Ainda na narração de Teófilo, o autor apresenta uma
outra política desenvolvida pelo Estado para o controle da população famélica
que seria o embarque da mesma forçadamente para regiões distantes e inóspitas,
como a região do Amazonas. Acerca disse, o autor narra:
Chegou a hora da separação. Quatrocentos retirantes de todas as idades
marchavam em préstito para o porto da cidade. Era triste aquela procissão, como
o desfilar de um enterro. Todos magros, macilentos e esfarrapados. [...]
Forçados a abandonar a terra natal, caminhavam desalentados (TEÓFILO, 1979, p.
124)
“Era a emigração a
última desgraça reservada ao cearense; e a emigração forçada” (TEÓFILO, 1979,
p. 127).
O que fica evidente na trama de Teófilo, bem como na construção de suas
personagens, são os problemas de uma administração pouco interessada, a falta
de organização e critérios para distribuição de víveres, o mais importante é a
promoção da caridade dos ricos, nos quais compactuam com a lógica perversa das
distinções socias, do trabalho escravo e de que Deus só dá aos seus filhos
aquilo que é merecido.
A seca padecia sob o Ceará, quando uma enorme
epidemia de varíola se espalhou pela população, mais uma vez é colocado que a
doença não escolhe suas vítimas, porém é entre a população retirante que ela é
mais brutal. Sabemos que durante a ocorrência da seca de 1877, já eram
conhecidas vacinas contra a varíola, porém Teófilo, que tem um reconhecido
trabalho de combate a varíola, só teve acesso ao conhecimento anos depois. O
governo ainda construiu lazarentos para acolher a população doente, mas as
estruturas eram precárias, o máximo que faziam era prolongar a dor e a morte. A
chegada desse surto viral agravou ainda mais a situação dos retirantes que já
se encontravam em situação grave de desnutrição e fome.
A varíola entrou traiçoeiramente
em Fortaleza. As condições da população proporcionaram ao mal os meios seguros
de um ataque súbito e terrível. A elevação da temperatura a 33° centígrados, a
falta de vacina, o nenhum asseio nas habitações, a aglomeração dos emigrantes
nos abarracamentos abriram mais o campo ao inimigo. [...] O governo construiu
lazaretos provisórios, contratou médicos, nomeou comissões de pronto socorro,
mas tudo apenas atenuava um pouco os sofrimentos da população indigente [...]
As enfermarias regurgitavam de doentes [...] A peste invadiu tudo, desde a
palhoça dos retirantes até o palácio do presidente da província.” (TEÓFILO,
1979, p. 155-156)
Dentre os
vários episódios narrados por Teófilo, é possível perceber como seca/fome e
doença desumanizavam a população. A varíola se espalhava rapidamente e deixava
no enfermo um aspecto repugnante, dezenas de pessoas morriam diariamente e não
havia um serviço de sepultamento, as pessoas tinham medo de contrair a doença,
muitas morriam e poucos tomavam conhecimento. Uma das cenas mais desumanizadora
do romance, é a narrativa sobre a morte da personagem Quitéria do Cabo, uma
senhora de idade que não tinha familiares. Quitéria contraiu a doença e não
tinha forças nem para chamar um vizinho, sucumbe no interior de sua casa, sem
ajuda, rasteja-se em busca de um poco de água, acaba morrendo e seu corpo
permanece por dias no mesmo local. Sua morte só é descoberta, dias depois,
quando aves de rapina cercam sua residência.
É claro
que estávamos longe de falar dos direitos do idoso, mas esta cena evidencia o
medo da população de morrer doente, a falta de assistência e a desumanização da
miséria associada a doença. Nesse sentido, é preciso reiterar, seja em nome da
história das doenças, da seca, da fome ou dos pobres, que a corda sempre
arrebenta do lado mais fraco, diante da crise quem padece são homens e mulheres
pobres, cuja a vida não importa ou pouco importa, os pobres são historicamente
usados para promover a bondade dos ricos e diante deste período que combinou
fome e doença podemos perceber como a doença é aviltante, mas que ser pobre
diante de tanta desigualdade é mais humilhante ainda.
Considerações
Finais
As
doenças sempre existiram na história da humanidade, nem sempre estivemos certos
de como elas eram transmitidas ou quais eram as suas causas. Há um longo
percurso na história das ciências e das descobertas acerca dos microrganismos;
a elaboração de vacinas, remédios, são tecnologias muito recentes, a
popularização e o acesso aos sistemas de saúde é uma conquista social lograda
por meio de décadas de lutas e reivindicações sociais. O direito a saúde é um
direito humano e hoje, é dever do Estado garanti-lo, no Brasil a existência de
um sistema único de saúde é uma vitória recente da população e deve ser
preservado para garantir que os mais pobres tenham acesso à saúde.
Diante
de momentos de forte crise é natural a cobrança de respostas eficazes. Mas como
sabemos as descobertas cientificas levam tempo e fazer usufruto delas em prol
do bem comum da sociedade, depende do engajamento político de quem investe e de
quem faz ciência. No século XIX, não sabíamos do que sabemos hoje, não tínhamos
os direitos assegurados, e é por isso que preciso estar vigilante quanto as
nossas conquistas sociais, fruto de história sangrenta de batalhas perdidas. O
capitalismo dependente brasileiro permanece como um dos principais fornecedores
de produtos primários do mundo, enquanto continua importando tecnologia dos
países ricos, não somos capazes de produzir tecnologia de ponta, que seria
essencial no enfrentamento desta pandemia, e certamente, não é por falta de
recursos ou mão de obra qualificada. É significativo que nos últimos anos o
investimento nas universidades públicas, principais instituições de produção do
conhecimento científico brasileiro, tenha despencado.
A
pandemia está acontecendo e fica evidente a importância de um Estado forte,
comprometido com os direitos da população, principalmente daqueles que vivem em
situação de vulnerabilidade econômica. O covid19 chega ao Brasil pelas camadas
mais elevadas da população, porém quem mais morre são os moradores de
periferia, é inadmissível que depois de tantas descobertas e melhoramentos no
campo da saúde, os mais pobres continuem pagando a conta em momentos de crise.
Não podemos recuar em direitos que foram conquistados, sabemos que o primeiro
impulso das autoridades políticas é negar as proporções nefastas das doenças, é
contrariar as medidas de prevenção, é mesmo, deixar morrer aqueles, cuja a vida
parece valer nada, para salvar a economia.
Mas se a história nos ensina alguma coisa, como muitos insiste em dizer,
é preciso estar atento, é direito do povo exigir ações técnicas dos governos
estaduais e deferias, preservar suas vidas e ter acesso à informação
confiáveis. Não é negando a ciência, o conhecimento revolucionário do último
século que iremos chegar vivos ao final desta crise.
Autores
ANA KAROLINA
FREIRE OLIVEIRA
PEDRO GILSON
DE OLIVEIRA PAULA FILHO
CAROLINA DE
FÁTIMA LINHARES AUGUSTO
² MORAES, Kleiton de Sousa. O
Progresso descobre o sertão - A inspetoria de Obras Contra as Secas
(1909-1918). 1. ed. Alameda Editorial, 2018.
³ ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção
do nordeste e outras artes. Editora: Cortez. Edição: 5ª Edição. Ano: 2011.
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