ENSAIOS NA QUARENTENA - DUAS FACES DO CONSPIRACIONISMO DURANTE A PANDEMIA: O ANTICOMUNISMO E O ORIENTALISMO

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DUAS FACES DO CONSPIRACIONISMO DURANTE A PANDEMIA: O ANTICOMUNISMO E O ORIENTALISMO
Antonio Maurício Martins Neto
Francisco Guilherme Neves Dantas de Melo
Lucas Estélio Pereira de Assis
Desde a classificação feita pela OMS (Organização Mundial da Saúde) de que a proliferação do novo coronavírus pelo mundo tornou-se uma pandemia, muito se alterou na vida da população mundial. Ainda no início de abril, cerca de dois terços das pessoas de todo o mundo estavam em algum tipo de distanciamento social (seja ele o isolamento total ou parcial)[1]. Nem todas as pessoas estão praticando o isolamento, por diversos motivos, seja porque seus países não estejam com níveis muitos altos de pessoas com a Covid-19, ou mesmo as que vivem em países contaminados e estão sendo obrigadas a trabalhar, questões que serão abordadas nos outros textos. Com isolamento social ou não, o fato é que a nova dinâmica mundial é vivenciada por todas as pessoas do mundo, assim todos têm suas vidas modificadas.
Podemos perceber isso ao atentarmos para meios de comunicação. Um olhar sobre os jornais, as redes sociais e outros aplicativos de mensagem é algo útil a se fazer quando tentamos entender o que as pessoas estão falando e pensando nessa época. A partir de um olhar sobre o teor de falas de autoridades políticas, jornalistas e usuários da internet, é de estarrecer o conteúdo conspiracionista e desinformado de algumas delas. Geralmente, tratando de uma suposta origem do novo coronavírus, essas declarações e notícias falsas tentam culpabilizar ora o Governo Chinês, ora seu povo pela disseminação do vírus por todo o mundo. Uma reflexão histórica sobre as atitudes que relataremos a seguir, nos permite entender em que medida elas são tributárias de um passado e como elas são influenciadas e ao mesmo tempo influenciam a conjuntura geopolítica global.
Pronunciamento de importantes autoridades políticas chegaram a rebatizar o patógeno sob o nome de "China virus" ou "vírus de Wuhan" como fizeram Mike Pompeo[2], empresário e Secretário de Estado dos Estados Unidos e o próprio presidente Donald Trump: “Os Estados Unidos apoiarão poderosamente indústrias, como a Airlines e outras, que são particularmente afetadas pelo vírus chinês. Seremos mais fortes do que nunca!”.[3] O presidente bilionário posteriormente mudou de postura, cedendo à pressão feita por parte da opinião pública, apesar de negar as afirmações dos que apontaram a xenofobia em seu discurso.[4]
Declarações como essas se multiplicaram, saindo da boca de comentaristas de grandes veículos de comunicação estadunidenses e demais influenciadores digitais do espectro da extrema-direita. Falas absurdas e infundadas na realidade, como as proferidas pela jornalista Zoe Martínez, na emissora CNN Brasil, denominavam o vírus como "o vírus do Partido Comunista Chinês"[5]. Num cenário como esse não tardaram a viralizar declarações abertamente preconceituosas como a do influenciador bolsonarista Bernardo Kuster: “Sim, o nome correto é vírus chinês. Essa porra veio da China. Houve negligência e mentira dos china. Não confie em comunista. Muito menos em chinês comunista”.[6] Até o início da abril, (dia 2) a postagem possuía vinte mil curtidas. O próprio Ministro da Educação chegou a propagar mensagens desse teor numa rede social (imagem 1) depois da repercussão negativa ele foi pressionado a apagar a postagem.
Falas como essas não surgem à toa. A marca do anti-comunismo está presente em todas elas. A atual historicidade é de uma guerra comercial entre duas grandes potências, EUA e República Popular da China, onde ambas tentam ampliar cada vez mais a entrada de suas mercadorias em novos territórios. A China vive um acelerado crescimento econômico desde a década de 1980, quando uma série de reformas políticas internas, que colocam em xeque o próprio caráter socialista do regime chinês, proporcionaram uma nova estratégia desenvolvimentista, conduzida por investimento público do Estado: combinando o Planejamento descentralizado (empresas estatais centralizadas, que promoveram a integração de um mercado interno autônomo), com Mercados Concentrados (zonas especiais de comércio e livre investimento)[7]. O resultado disso foi um crescimento médio do PIB chinês de 9,5% a.a de 1980-90 e de 9% a.a. do nos últimos 28 anos (1992 a 2019)[8].
Os EUA vêem seu lugar de poder hegemônico global ameaçado. Nessa nova disputa os estadunidenses se utilizam de uma velha arma amplamente utilizada em disputas políticas e econômicas do passado: o anticomunismo. O tempo mudou e para existir em circunstâncias novas, o anticomunismo também. O novo tom é esse: o Regime Chinês é descrito por essas autoridades como sanguinário, centralizador e antidemocrático. A diferenças com o contexto da década de 1960 são enormes: a República da China atualmente vive uma economia de mercado (ainda que administrada pelo estado) e tenta expandir cada vez mais suas zonas de influência a partir da exportação de mercadorias para diferentes regiões do mundo. Apesar de a extrema direita mundial descrever um suposto espectro do comunismo, que ronda o mundo hoje, a disputa entre ambas as potências é pelo mercado capitalista. Dessa forma, utilizando do anticomunismo (ainda que descabido) os setores da extrema direita mundial entram na disputa em defesa do imperialismo estadunidense.
As mensagens e (des)informações proferidas por eles cumprem o papel de demonizar o Governo Chinês e acabam por alimentar teorias da conspiração vinculadas nas redes sociais e aplicativos de mensagem, disseminando o pânico e a desinformação. As gravíssimas "fake news" que circulam, são expressão das posturas dessas autoridades. Circulam no WhatsApp diversos vídeos de teor conspiracionista, alertando para uma suposta ação proposital do Partido Comunista Chinês, com a finalidade de um domínio global. O resultado é aversão de parte da população ao Governo Chinês, baseada não em informações confiáveis, não em análises íntegras sobre o regime unipartidário existente naquele país, mas em informações falsas, proferidas por interlocutores que tentam fragilizar a imagem do Governo Chinês perante o mundo todo. Isso também contribui para que as pessoas fiquem mais amedrontadas ainda com a pandemia e uma suposta guerra biológica deflagrada por um Estado com grandes capacidades militares.
Outro fato lamentável é o racismo praticado contra o povo chinês, já existente e estimulado mais ainda, por outras "fake news" nessa época de pandemia. Circula em aplicativos de mensagem uma suposta origem do vírus: a suposta utilização de morcegos na culinária chinesa. A ocorrência é muito preocupante, pois em aplicativos como WhatsApp o alcance das mensagens é altíssimo e elas são criptografadas, o que impede o controle da disseminação de notícias falsas. Sintomático disso é a campanha veiculada pelo Ministério da Saúde, de combate às “fake news” (imagem 2) denunciando as informações falsas. Na publicação que veicula essa denúncia o Ministério ainda reitera: “Não compartilhe essa mensagem, ela é falsa! De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) não existe nenhuma comprovação científica de que "sopa de morcego" tenha sido a responsável pela disseminação do novo #coronavírus na China”.[9]
Junto às notícias falsas, logo surgiram situações de preconceito contra pessoas de qualquer ascendência oriental. No Brasil, no início de fevereiro, antes mesmo da confirmação do primeiro caso no país, pessoas relataram casos de preconceito.[10] Atitudes de combate ao preconceito também surgem em solidariedade às pessoas discriminadas. É o caso de Si Liao, produtora de conteúdo no Youtube a chinesa residente no Brasil publicou vídeos falando sobre situações de preconceito como as relatadas na reportagem e alertando contra informações falsas como a “fake news” a respeito de morcegos.[11] Mesmo assim, não faltam comentários de cunho racista no vídeo. Pessoas afirmam que os mercados de mariscos no país não possuem nenhuma higiene, que o povo chinês é ignorante por consumir animais silvestres e etc.
Aqui temos altas doses de etnocentrismo. Nas leituras de mundo feitas por essas pessoas, a sua cultura (ocidental) é considerada a “correta” e o centro do mundo, enquanto a do Outro (chineses e demais asiáticos, já que a visão preconceituosa homogeneíza todos os povos do oriente global) é considerada marginal. Muitas vezes essa atitude pode ser involuntária, considerando o quanto o racismo está enraizado na sociedade, mas isso não apaga a violência do ato, um verdadeiro alterocídio. Quem nos ajuda a entender essa realidade é Achille Mbembe, na sua formulação de como opera o racismo: a construção de um Outro (chinês, asiático, oriental ou negro) visto como destituído de humanidade, hostil e passível de destruição, portanto ele não existe em pé de igualdade com o Eu (o ser ocidental europeu).[12]
Ora, não é por que um tipo de comida não é comum em meu país que o mesmo vale para outros. A própria noção de uma “culinária chinesa” como algo unificado é uma percepção ocidental. Uma abordagem sociológica da alimentação nos fornece:
“Como um país de dimensões continentais e número acentuado de grupos étnico-culturais, a gastronomia chinesa ganhou em riqueza e diversidade, tornando-se um caldeirão de sabores. As formas de preparo envolvem geralmente o grelhado, o cozido, o ensopado e os crus. [...] os costumes alimentares chineses apresentam características que a apresentação internacional da sua cozinha não deixa transparecer.”[13] AREIAS, 2015, p. 46
Temos nas falas preconceituosas a expressão de uma particularidade do racismo: um discurso orientalista, como conceituou Edward Said.[14] Um olhar ocidental sobre aqueles povos habitantes do chamado Oriente Global, que tende a reconhecê-los como um Outro. Um outro que é particular, diferente do “homem ocidental” considerado por ele mesmo, um ser universal. A visão orientalista de mundo tende a homogeneizar os chamados povos  orientais partindo de diversas frentes: suas culturas supostamente semelhantes, bárbaras e primitivas; características fenotípicas, como exemplo cor de pele e “olhos puxados”. Se o racismo fundamentou e foi fundamentado pelo colonialismo europeu desde o século XVII, o orientalismo foi sistematizado no século XIX, e serviu muitos anos ao imperialismo europeu, na ásia sustentando uma relação de exploração colonial dos Estados-nação europeus e posteriormente estadunidense, nas antigas colônias como China, Índia e posteriormente os povos do chamado “Oriente médio”.
É necessário perceber em tudo isso a disputa pela culpabilização. É sempre necessário identificar os culpados: o vírus, o  transmissor, o país, o povo. Ações são esperadas de governantes e autoridades responsáveis, que se omitem sob o manto da culpa do outro. Isso porque, a partir do momento que se anuncia o risco de pandemia e seus líderes se negam a tomar as medidas recomendadas por cientistas, médicos e outros profissionais, o problema passa a ser não apenas uma questão de saúde, como também política.
É a partir daí que toda a culpa e responsabilidade são jogadas na China. É como se nós, bem-civilizados, estivéssemos comprovando um fato: nosso desdém pelo oriente é justo e além disso, serve para nos proteger. O bode expiatório perfeito e um inimigo comum para nações capitalistas ocidentais, que agora deveriam unir-se para enfrentar um suposto flagelo chinês.
Assim, observando a expressão do anticomunismo e do orientalismo, entendemos que a tradição de gerações passadas pesam sobre as pessoas de hoje. Fica muito evidente que os preconceitos e as artimanhas políticas existentes hoje, não são algo novíssimo, apesar de apresentarem características específicas. As gerações do presente recorrem a imagens forjadas desde o século XIX sob o signo do preconceito e da dominação colonial: os povos do chamado oriente, são vistos não em sua diversidade social, cultural, linguística, de costumes e etc. mas como um povo, homogêneo, atrasados em muitos aspectos em relação aos “ocidentais”. O comunismo visto não como uma proposta de sociedade igualitária surgida dum movimento coletivo, mas como uma entidade demoníaca que possui governantes, uma patologia, um espectro maligno que ronda as nações, uma forma de vida autoritária. Nessa época de crise sanitária as pessoas conjuram os espíritos do passado, pegam emprestado suas palavras de ordem “a fim de representar, com[...] essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial”.[15]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AREIAS, Claudia Lucia Moreira. Interface entre cultura alimentar chinesa, sociabilidade e fluência cultural. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Sociologia) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Sociologia, 2015.
MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014.
MEDEIROS, Carlos Aguiar de. Economia e política do desenvolvimento recente da China. Revista de Economia Política, vol. 19, nº 3(75). jul./set. 1999.
SAID, Edward W. Orientalismo: Oriente como invenção do ocidente . São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 370p.



[1] PODER 360. Mundo tem mais de 4 bilhões de pessoas em quarentena
[2] G1. Secretário de Estado dos EUA chama coronavírus de 'vírus Wuhan' e irrita chineses. 6 de março de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/03/06/secretario-de-estado-dos-eua-chama-coronavirus-de-virus-wuhan-e-irrita-chineses.ghtml
[3] Twitter: @realDonaldTrump The United States will be powerfully supporting those industries, like Airlines and others, that are particularly affected by the Chinese Virus. We will be stronger than ever before!” 16, mar, 2020. . Disponível em: https://twitter.com/realDonaldTrump/status/1239685852093169664?s=20
[4] UOL. Após acusações de xenofobia, Trump deixa de chamar coronavírus de "vírus chinês"... - Veja mais em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/efe/2020/03/25/trump-deixa-de-chamar-coronavirus-de-virus-chines.htm?cmpid=copiaecola
[5] CNN BRASIL. Debate: Vírus Chinês? Ativistas debatem responsabilidade da China. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=Ol-hpsZnRH4
[6] Twitter: @bernardopkuster. 19 de mar, 2020. Disponível em: https://twitter.com/bernardopkuster/status/1240601991803482112
[7] MEDEIROS, Carlos Aguiar de. Economia e política do desenvolvimento recente da China. Revista de Economia Política, vol. 19, nº 3(75). jul./set. 1999.
[8] CEIC DATA. China Crescimento Real do PIB. 1992 - 2019, trimestral. CEIC Data. Disponível em: https://www.ceicdata.com/pt

[10] Disponível: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml
[11] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l7EzDjuXe1g
[12] MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014. 
[13] AREIAS, Claudia Lucia Moreira. Interface entre cultura alimentar chinesa, sociabilidade e fluência cultural. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Sociologia) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Sociologia, 2015.
[14] SAID, Edward W. Orientalismo: Oriente como invenção do ocidente . São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 370p.
[15] MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo, Boitempo, 2011.


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