ENSAIOS NA QUARENTENA - Uma "gripezinha": políticas de genocídio dos mais pobres na história de doenças no Brasil.


PDF DO ENSAIO


Uma “gripezinha”: políticas de genocídio dos mais pobres na história de doenças no Brasil.


André Ribeiro Totti
Antônio Douglas Brito da Silva
Maria Daniella Alves Ramos
Matheus Gerard de Sousa Mesquita

“É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentida apenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário, nos centros onde avultava a imigração europeia, a contribuição das colônias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o total de mortos. Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento europeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência da nação na sua medula, na seiva regenerativa, do bom sangue africano, com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os ares de um matadouro da raça branca”.

O trecho acima trata-se de uma descrição de Rui Barbosa sobre os males que a febre amarela acometia no Rio de  Janeiro, no século XIX. O número de vítimas da doença crescia cada vez mais com o passar do tempo. Em 1850, uma grande epidemia provocou um elevado número de óbitos, que fez surgir, posteriormente, um intenso debate sobre questões de saúde e higiene pública. As ideias criadas, desenvolvidas e discutidas naquele momento por médicos, sanitaristas, ou seja, figuras públicas, tinham um alvo: as moradias coletivas, mais conhecidas como cortiço. E, como se observa, o espectro de que pessoas pobres eram um risco iminente de contágio rondava o imaginário das elites intelectuais e econômicas do período.
Essa situação trouxe consequências cruéis para as moradoras e moradores desses locais. Foi realizada uma intensa fiscalização desses espaços. Os cortiços considerados insalubres recebiam ordem de fechamento. Os que tinham problemas, mas não eram registrados com o caráter de insalubridade, recebiam um prazo para que fossem realizadas as obras de melhoria até a vistoria realizada pela prefeitura retornar. No entanto, muitas vezes, apesar de serem realizadas as melhorias solicitadas, os cortiços eram obrigados a fechar. Assim, era anunciada a chegada de uma catástrofe. E não demorou muito para que chegasse.  
Em 1892, após Cândido Barata Ribeiro assumir a presidência da Intendência Municipal do Rio de Janeiro, foi imposta a medida que ordenava a demolição dos cortiços. Isto é, uma intensa política de destruição dos espaços onde a classe mais pobre podia residir, tendo em vista os elevados valores de morar em outros locais da cidade. O governo do Rio, assim como fizera o regime imperial do Brasil com as pessoas de cor em 1888, após a "abolição" da escravidão, deixou aqueles seres humanos jogados à própria sorte, desamparados. Assim, apesar de muitas e muitos tentarem resistir, o que os restou foi salvar alguns móveis e juntar parte dos destroços para construir seus barracos nos morros da cidade. Dessa forma, comenta o historiador Sidney Chalhoub "nem bem se anuncia o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio já entrava no século das favelas".
Não há como negar que o Brasil seja composto majoritariamente por pessoas cristãs. No entanto, isso não significa que essas pessoas estejam preocupadas com a vida e o bem-estar de outros seres humanos, principalmente dos mais pobres. Desse modo, é possível pensar que muitas pessoas, em especial as que pertencem à classe dominante e a outros grupos sociais que estão alinhados ao pensamento e ao discurso desenvolvimentista e de intenso progresso, poderiam argumentar que, diante do número crescente de casos de febre amarela e outras epidemias, como a varíola, e o consequente crescimento de óbitos, a situação ocorrida era necessária, apesar da condição em que ficaram as pessoas que moravam nos cortiços, pois o interesse principal do governo era evitar que aquelas pessoas continuassem sendo vítimas daquelas doenças. 
A análise da descrição realizada por Rui Barbosa evidencia muito bem os motivos pelos quais estavam sendo realizadas aquelas medidas. O número de pessoas brancas, não pertencentes às classes mais pobres e de imigrantes, que eram infectados pela febre amarela crescia. Novamente, poderiam surgir discursos e argumentações dos grupos já mencionados dizendo que isso não faz o menor sentido, pois somos todos iguais e essa distinção não existe. Não nos enganemos, muitas vezes, o desejo de morte e o mau-caratismo vem em pele de cordeiro, ou seja, por meio da "ingenuidade". É fato que a febre amarela e a varíola, por exemplo, eram problemas que acometiam àquela sociedade. No entanto, também é verdade que havia outra doença que acometia e matava um número muito maior de pessoas. Como afirma Chalhoub, “a tuberculose matou muito mais do que quaisquer das doenças epidêmicas”. Então, por que não houve uma operação por parte do governo do Rio para diminuir ou erradicar os elevados índices dessa doença? 
A partir do entendimento dos motivos que faziam da tuberculose uma doença séria naquele período, pode-se começar a responder essa questão quando Chalhoub argumenta que "os próprios médicos os associavam à nutrição e às condições de trabalho e de vida em geral da população". Além disso, é uma doença que se propaga com muita facilidade. Não é novidade ainda hoje, infelizmente, que um elevado número de pessoas não consiga suprir a quantidade de nutrientes necessários para que possa manter seus corpos resistentes à ameaça de vários tipos de doença. Também é sabido que, muitas vezes, pessoas pobres se inventam e reinventam, sujeitam-se a espaços de trabalho e condições desumanas para conseguirem levar, às vezes, o mínimo para dentro de casa. Esta, muitas vezes, construídas de modo improvisado, em locais não apropriados, aglomeradas com outras ao redor, sem as condições mínimas de se viver com dignidade. Assim, partindo da associação dos médicos sobre as pessoas mais propícias a serem contaminadas pela tuberculose, torna-se mais claro a prioridade em se realizar uma política com a intenção de se diminuir ou erradicar os casos de febre amarela enquanto muitas e muitos continuavam sendo infectados e morrendo de tuberculose sem que nenhuma medida séria fosse realizada. 
Quais corpos eram mais atingidos e expostos à morte? 
Penso que até aqui tenha ficado claro que se trata de pessoas pobres o maior números de óbitos em virtude da tuberculose. Entretanto, precisamos ir para além de uma questão de classe e expor outras opressões tão presentes, infelizmente, até hoje na sociedade brasileira. Dessa forma, além de corpos pobres, a maioria das vítimas era também de corpos negros, que haviam há pouco tempo saído de uma relação em que a humanidade lhes foi roubada e negada. Isso explica a ausência de atenção dada ao combate à tuberculose. Eram corpos majoritariamente negros e pobres morrendo. Assim, utilizando-se de uma expressão da psicóloga Suely Aires, naquele período e naquela circunstância esses eram os principais "corpos marcados para morrer".
Eis aqui o século XXI. O mundo enfrenta atualmente uma das maiores crises do século, não apenas sanitária e econômica, mas também política. Muitos países estão tratando como uma “guerra”, o mundo está passando por uma turbulência em que muitos países se veem como passageiros de um avião, que a qualquer momento pode cair. Porém, infelizmente, há aqueles que enxergam isso de outra maneira, de uma forma bem mais anticientificista, que é o caso do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Ele leva consigo um discurso vazio e focado apenas na economia, enquanto dirigentes de todo o mundo estão tentando conter os avanços do vírus, Bolsonaro não está levando a sério, fazendo discursos contra as recomendações indicadas por médicos do mundo inteiro. O intuito deste pequeno texto aqui é analisar o discurso do atual presidente e mostrar o seu caráter necropolítico, a partir da linha de pensamento do filósofo camaronês Achille Mbembe.
Na noite da terça-feira, 24 de março, Bolsonaro realiza um pronunciamento em âmbito nacional. O momento é marcado pelo início das medidas de combate ao vírus Covid-19 em todo o Brasil, pois os governadores de cada Estado realizam as devidas providências seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde. Porém, Bolsonaro confronta tais ações, não só dos governadores mas também ações de entidades ligadas à saúde, como a própria OMS e de outros países.
O discurso é marcado pela postura de subestimar a gravidade do problema que atingiu escala mundial, atacando a todos e culpando adversários, de aliados a opositores, procurando um bode-expiatório, mostrando o seu despreparo frente à cadeira do Executivo. Negando a própria Ciência, tendo em consideração os cortes de bolsas anunciados pela Capes, na portaria 34 do dia 18 de março, além de toda a gestão de desmonte da educação pública já realizado por ele no último ano. Acusando a China pelo Covid-19, não apenas ele, mas seu filho Eduardo Bolsonaro e o ministro da educação, Weintraub, usaram da rede social Twitter para atacar e demonizar o país asiático.
Mostrando-se uma cópia barata dos discursos realizados anteriormente por Donald Trump, presidente dos EUA, e Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido. Contudo, no momento em que Bolsonaro profere seu discurso, líderes ocidentais passam a pronunciar sentenças ambíguas e diferentes de até então. Em um primeiro momento, demonstraram-se anticientificista e tentaram minimizar a pandemia que já estava em curso, num segundo momento, agora crítico nos países anteriormente citados, tentam dar uma resposta mais razoável, passam a nomear essa experiência como “guerra sanitária”. Dessa forma, as palavras de Bolsonaro, que encontravam respaldo nesses dois aliados, distinguem-se do cenário mundial e observa-se seu isolamento externo. Enquanto, internamente, os seus apoiadores o seguem cegamente. 


Alguns conceitos importantes

Além das barbaridades já expostas anteriormente, o que marca no seu pronunciamento é a sua lealdade para com a agenda neoliberal. Bolsonaro convoca a população a romper o isolamento, porque a pandemia é apenas uma “gripezinha” e quem tem um histórico de atleta, como o próprio — “já observado nos seus vídeos de flexões” — pouco sentiria. A justificativa dada é de uma futura crise econômica causada pela necessidade do isolamento social, e de que o Brasil precisa garantir os empregos durante a crise. Assim, pede o retorno das atividades e escolas, e de um denominado “isolamento vertical”, no qual somente aqueles acima de 60 anos utilizaria da prática da quarentena. 
Entretanto, a cada pronunciamento do presidente transparece mais a sua crueldade e desumanidade. “Alguns vão morrer, lamento, é a vida”, diz secamente em entrevista ao apresentador Luiz Datena, na sexta-feira 27 de março. O presidente declara abertamente que a vida do brasileiro não tem importância, o seu interesse é salvaguardar a economia, “o maior remédio para a doença é o trabalho, quem pode trabalhar, tem que voltar a trabalhar”, acrescenta. Não obstante, convido-o, leitor, a realizar uma pequena reflexão. Os “alguns” que irão padecer da doença será, majoritariamente, a população das periferias e os habitantes dos interiores do Estado. Infelizmente, não se trata apenas de uma conjectura, são dados alarmantes e comprovados. 
O estudo realizado pelos pesquisadores dos departamentos de Saúde Comunitária, de Engenharia de Transportes e de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), em conjunto com especialistas da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em parceria com a Prefeitura Municipal de Fortaleza, teve como ponto central mapear e classificar os bairros com mais propensão de epidemia grave do Covid-19 em Fortaleza. A partir dos indicadores de carga de infecção (casos confirmados até o dia 12 de março), combinação da carga de infectividade e da mobilidade populacional entre os bairros da Capital e o índice de vulnerabilidade epidêmica populacional. 
O resultado é que entre os 16 bairros “potencialmente mais atingidos pela epidemia grave” (Aldeota, Cais do Porto, Vicente Pinzon, Praia do Futuro I e II, Arraial Moura Brasil, Barra do Ceará, Canindezinho, Centro, Cristo Redentor, Edson Queiroz, José de Alencar, Presidente Kennedy, Papicu e Vila Velha), apenas 3 possuem o Índice de Desenvolvimento (IDH) acima de 0,5: Aldeota, Centro e Papicu. O resultado obtido fala por si, quanto menor o IDH maior os números de casos, com alta taxa de letalidade. Dessa forma, a periferia pagará com vidas os vários crimes daquele que está no Planalto. Mas, “e daí? Lamento, quer que eu faça o que? Não sou coveiro”.
Para aqueles que foram constantemente atacados por suas falas e ações, como a comunidade negra, LGBTQI+, mulheres, cientistas, as universidades públicas, etc — a lista é longa — o seu caráter genocida sempre foi bem claro e destacado. Mas, foi necessário que ele pronunciasse falas absurdas como essa para que a face genocida de Bolsonaro ficasse evidente para alguns brasileiros, para outros, a cegueira permanece. Bolsonaro não tem mais apoiadores; ele tem cúmplices. Vamos dar nome aos bois. 
Eis o porquê. Michel Foucault desenvolve importantes conceitos para refletir e compreender o atual cenário caótico da pandemia. Para iniciar, “poder” no capítulo “Nascimento do hospital”, do livro Microfísica do Poder, a respeito do nascimento do hospital como instituição. Esse antes tinha um foco de “acolher” pobres e doentes, mas não para curá-los, apenas para mantê-los longe da sociedade. É algo puramente de segregação dos doentes para que não contagiem toda uma sociedade. O Hospital aqui era tratado apenas como um intermédio entre a vida e a morte, buscava a salvação espiritual mais que a salvação material. 
Usando as palavras do próprio Foucault:

 “Dizia-se correntemente, nesta época, que o hospital era um morredouro, um lugar onde morrer. E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente, mas a conseguir sua própria salvação”. 

Portanto, o hospital surge na modernidade com esse caráter progressista e cientificista. Foucault aponta o hospital como uma das instituições centrais na modernidade, pois, além de dar ao corpo humano novas possibilidades de se comportar, como, por exemplo, lidar melhor com a dor sob efeitos de analgésicos, também é símbolo de um progresso em que o ser humano agora tem controle até sobre as doenças que assolam a humanidade desde sempre.
Porém, com o Covid-19, o que se observa é uma crise na instituição hospitalar. A maioria dos hospitais do mundo não tem como suportar essa pandemia que já fez milhares de vítimas. Pode-se analisar a partir dessa crise sanitária uma crise na modernidade, que expõe consigo o discurso do presidente do Brasil, de que não devemos seguir as recomendações médicas. Essa crise também traz consigo o caráter necropolítico, pois mostra que as pessoas que não têm acesso ao hospital, que na teoria da modernidade deveria curar e salvar vidas que estão à mercê da morte.
Outrossim, há o conceito de biopoder, que entende como a relação de domínio da vida sobre o qual o poder estabelece controle, que se expande do território até penetrar no corpo dos sujeitos. O ser soberano para Foucault é ter o controle sobre a mortalidade e delimitar que a vida é uma manifestação de seu poder. Fazer viver e deixar morrer[1]. Contemporaneamente, é dessa maneira que o poder é inscrito. Foucault, portanto, compreende que os estados modernos fazem a inclusão da vida biológica nos cálculos e mecanismos do poder estatal, o que determina a politização do corpo a partir de meio de controle, dentro dos quais se inclui a medicina na politização dos hospitais. No pronunciamento de Bolsonaro, pode-se observar essa ordem de poder, ele escolhe para quem será dada a vida e a morte. É uma escolha friamente calculada: a vida para a economia neoliberal e a quem dela se beneficia, a morte para quem se sacrifica para que o necroliberalismo siga. 
O sonho neoliberalista, o capitalismo, mostra a sua verdadeira face necroliberalista. Aqui, insere-se novos conceitos, desenvolvido pelo filósofo camaronês, Achille Mbebmbe. Ambos extremamente concisos e importantes para compreender essa política da morte e do terror implantada pelos Estados contemporâneos, especialmente, por aqueles líderes extremistas e nacionalistas que se revelaram nos últimos anos.  Mbembe desenvolve a ideia de necropolítica no ensaio de mesmo nome, publicado na revista Arte&Ensaio, e no pequeno livro da n-1 edições. 
Ele parte do argumento da biopolítica e explora além desse, pois, a sua ideia é baseada principalmente no poder que o soberano exerce de destruição dos corpos humanos. Pode-se observar o pensamento em prática, com o último “grande” feito dos Estados Unidos. Nesse, o necroliberalismo mostra ainda sua face mais amarga nessas atuais condições, e mostra, para além das pessoas, países que podem ou não ter mais mortes pelo vírus, pois no dia 04/04, o presidente Donald Trump mandou barrar 200.00 respiradores que tinham destino Alemanha, França e Brasil, ato que o jornal BBC News descreveu como “pirataria moderna”.
Citando o mesmo, a “soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é”. O poder agora é definido pelo descartável e necrotério. As sociedades contemporâneas são corpos prontos para serem destruídos, marcados pelo terror, “submissão da vida ao poder da morte”. É o que ele denomina de “mundos da morte”, novas formas de existências sociais perpassadas pelo terror e a coexistência com a morte. O indivíduo é reduzido à carne putrefata, o corpo perde o seu valor. Para elucidar sua linha de pensamento, Mbembe cita a Palestina como forma de necropolítica exemplar. Mas não precisamos ir tão longe, a Palestina é logo aqui, nas periferias. 
Quais vidas importam? Quem morrerá? Quem viverá? Lembrando que a economia é a prioridade, essa não pode parar, mesmo se parte da população tenha que morrer para manter a produção. “Lamento, é a vida”. Mbembe escreve que isso é o cerne do necroliberalismo, sempre vai existir a lógica do sacrifício calculado, a concepção de que alguém vale mais do que outro, e assim, quem não tem valor pode ser descartado. “Lamento, é a vida”. 
Giorgio Agamben, no intuito de ir além de Foucault, continua as reflexões acerca de como a política controla os corpos no exercício do biopoder e afirma que a premissa de todo corpus político é a dilaceração da vida biológica numa forma determinada de ser que, imersa nas relações de poder, insere-se em um circuito fechado de valores e significações o qual determina valores positivos e sagrados, tabus e proibições, preconceitos raciais, de gênero, de classe na divisão dos indivíduos que serão privilegiados ou excluídos na ordem política. 
Nesse sentido, a política primeiro exclui as formas de ser fora de seu círculo fechado de valores, para incluir somente aqueles que se adaptem às suas imposições. Constitui-se a política, portanto, como uma exclusão inclusiva a partir da qual se formará o estado de direito com suas normas e seu sistema jurídico.
O autor ainda vai além na sua reflexão afirmando que é sob o estado de exceção, quando a vigência das leis é suspensa pelo soberano, que o estado de direito mostra sua verdadeira face, pois não terá mais as leis do direito normativo para regular seus atos, e mostrará, portanto, ao quê veio, a qual exclusão inclusiva constitui suas normas, a qual violência originária constituiu-se como estado de direito.
Têm-se, por fim, que é a partir do estado de exceção, a partir de quais formas específicas de vida são excluídas no caótico estado sem leis, que se constitui o estado de direito como estado de exceção que parte de uma violência originária.
Explicitemos, portanto, como a violência constituinte das normas do estado influencia o controle dos indivíduos. Para tanto, Agamben compreende a implicação da vida nua na ordem política através do Homo Sacer, aquele sujeito que, alvo da violência originária, tem em sua origem a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono, pois compreende-se que a soberania do estado detém o poder de o matar sem sofrer a penalidade de ter cometido homicídio, constituindo o Homo Sacer como vida matável. Tal contexto, vale lembrar, é facilmente observável no estado de exceção.
Cabe, portanto, utilizar tais aportes teóricos para o entendimento do caso brasileiro. Para isso, lembremo-nos, sobretudo, de que à epidemia do Covid-19, não somente no Brasil, mas no mundo todo, seguiu-se o empreendimento pelos governos de uma série de medidas de cerceamento à liberdade, que começam com a implantação de um estado de quarentena necessário à prevenção do vírus, mas que a partir daí segue-se às punições contra a liberdade de expressão e locomoção, de modo que diversos autores, incluindo Agamben, caracterizam o momento como a instauração de um estado de exceção contra o inimigo invisível que é o Covid-19. Observemos, portanto, as implicações éticas implícitas no estado de exceção, uma vez que, como já foi dito, é no estado de exceção que o estado de direito revela a violência originária que o constitui.
Sendo assim, a política da quarentena, vale observar, é perfeita, sobretudo, para aqueles que possam arcar com ela, que possam ficar em casa com renda monetária capaz de suprir os custos da vida. Aqueles que não podem, diante da necessidade de conseguir no trabalho sua parca renda mínima, jogam, ao contrário, seu destino entre a possibilidade do contágio letal e o veredicto da fome e do desamparo. Ficam, portanto, num impasse difícil de resolver por si mesmos, mas que poderia ser facilmente resolvido pelo estado através de eficientes políticas públicas de auxílio ao desamparo durante o tempo que durar a pandemia. O que ocorre é a realidade crua, tal como ela é e que agora vem à tona para quem esteja disposto a perceber. Boa parte da sociedade e o governo parecem se importar mais com o bem-estar da indústria, do comércio e do sistema financeiro, do que com a ameaça de uma chacina virulenta àqueles obrigados a trabalhar. Observamos, então, que não lhes é dado o direito à vida.
A questão é quem são os corpos descartáveis. Quais são os “corpos marcados para morrer”. Realizando uma ligação com o que foi exposto anteriormente, o poder da morte opera historicamente nos corpos considerados periféricos, as mesmas raças, as classes sociais e gêneros. Pobres, negros, mulheres, homossexuais, travestis, transexuais, etc. Como uma espécie de política de imunidade[2], em que as políticas de morte efetuam nesses corpos estranhos para manter a soberania de uma restrita comunidade. Os corpos periféricos atravessam um processo de abstração, exclusão e destruição que, no fim, o sujeito deixa de ser tratado como outro, deixando sua face humana diante dos cálculos do estado. Para que, com esse processo, a lógica necropolítica de destruição máxima dos corpos possa ser materializadas e posta em prática. As técnicas biopolíticas e necropolíticas se inscrevem e perpassam do território nacional até penetrar nos corpos individuais, no sujeito. 
A quarentena mostra-se ser um privilégio de classe e raça. Bolsonaro grita e esperneia que as medidas de prevenção e de isolamento social servirão apenas para levar ao país à crise. Para ele, urge a retomada do ritmo de vida normal que foi interrompida pelo coronavírus (não percebe que depois disso nada mais retornará a ser como antes?). Com isso, levando milhares de trabalhadores às ruas, aos ônibus, aos metrôs, aos postos de trabalhos, em constantes aglomerações para que a economia siga. É assim que o vírus chega às periferias de todo o país, é assim que o presidente assina a certidão de óbito de milhares de brasileiros numa pandemia.
Observamos, portanto, no discurso do presidente e da elite do atraso, a indiferença à vida que funciona como consentimento passivo ao assassínio sem punição que atinge determinados corpos, aqueles que são Homo Sacer, alvo da violência originária constitutiva do estado. Assim, a partir da observação de quem são aqueles que têm seu destino decretado na morte (mas que é, acima de tudo, confrontado pela resistência contra as leis do domínio) pelo estado e pela sociedade elitista, podemos ter a noção de que a violência originária constitui-se, nesta perspectiva, a partir de premissas de classe e de raça que foram basilares na construção de um estado calcado na exploração do trabalho livre e, sobretudo, do trabalho escravo.
Essa violência decorrente da exploração e do domínio manifesta-se também na linguagem que constitui o inconsciente, o discurso, e a ética. Sendo assim, compreende-se que na linguagem se expressa a exclusão do Homo Sacer, o que configura, em termos lacanianos, a abolição da dimensão do próximo, isto é, o indivíduo outro perde sua face humana, tornando-se objeto descartável pelos controles do estado soberano. Conclui-se, então, que a formação do inconsciente político se faz sob a ótica da exclusão que é, para seu fim, a violência contra o outro.


Observação: 

Convém ressaltar que esse ensaio foi produzido entre as primeiras duas semanas do mês de abril, talvez por isso se mostre um pouco desatualizado, mas não prejudica a reflexão aqui feita. Não esperávamos que as coisas fossem se suceder de maneira tão trágica. As expectativas já eram baixas, mas não a esse ponto. 2 ministros da saúde demitidos em tempo recorde durante uma pandemia em curso, 22.746 mortes. Brasil se torna sinônimo de descrédito mundialmente. 
   
                                                                                               
[1] Pois, de acordo com Foucault, existe um movimento de sociedade soberana para a sociedade disciplinar, a partir do século XIX. No primeiro momento, o soberano e seu poder é expresso pelo direito (quiçá, divino) de fazer morrer ou deixar viver. O segundo momento, um poder que o inverte e ao mesmo tempo o complementa, caracteriza-se pelo direito de fazer viver e deixar morrer.
[2] Roberto Espósito



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2002.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial / Sidney Chalhoub - São Paulo : Companhia das Letras, 1996.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993. 3v. (Biblioteca de filosofia e historia das ciencias ; v.15).
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 28 ed. Paz & Terra. 2014.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte / Achille Mbembe; traduzido por Renata Santini. - São Paulo: n-1 edições, 2018. 
Pesquisas revelam bairros de Fortaleza com maiores incidências de COVID-19 e riscos de contágio da doença.  Disponível em: http://www.ufc.br/noticias/14518-pesquisas-desenvolvidas-pela-ufc-revelam-bairros-de-fortaleza-com-maiores-incidencias-de-covid-19-e-riscos-de-contagio-da-doenca. Acesso em 15/05/20.
PRECIADO, Paul B.. Aprendendo do vírus. Disponível em: https://n-1edicoes.org/007. Acesso em: 10/04/20. 
AIRES, Suely. Corpos marcados para morrer. Revista Brasileira de Cultura, São Paulo, v. 240, p. 29-32, nov. 2018.
ZIZEK, Slajov. Violência. Boitempo Editorial. Pdf disponibilizado pela equipe Le Livros. Link inacessível.

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